Por toda a parte, ouvimos falar em ciência, progresso, biotecnologia, que o homem é capaz disso e daquilo, que estamos num patamar muito avançado cientificamente que merecemos uma altíssima e jamais antes imaginada segurança sanitária. Mas, segundo as vozes que ecoam no pesadelo midiático, toda a salvação social e sanitária está condicionada a sacrifícios individuais em nome da coletividade. A crença e o temor de um mal total e onipresente (o vírus), segundo Chesterton, representa uma variação da idolatria, algo que vemos na forma literal da paranoia social da obediência e do terror.
Quem repete os chavões do progressismo cientificista vê a si mesmo como alguém conectado, engajado com o pensamento do seu tempo, mesmo que todas essas frases maravilhosas de expectativa avançada tenham sido ditas pela primeira vez no início do século 20, há mais de 100 anos, por intelectuais que viram as primeiras grandes mudanças tecnológicas, a chamada abolição das distâncias com o avanço dos transportes, como um sinal de que o homem era mesmo uma força histórica invencível. Ele já não precisava nem mesmo de Deus.
As distopias surgiram exatamente da desilusão com as expectativas e a percepção de um certo deslumbre desmedido que se tornava até mesmo perigoso. O escritor ficcionista Herbert George Wells, autor do célebre Guerra dos Mundos, foi um dos grandes construtores do imaginário científico do nosso tempo. Considerado o pai da ficção científica, Wells abriu um espaço no imaginário popular para ser preenchido nas décadas seguintes. É com esse conjunto de imagens, frases e juízos, que julgamos as notícias do século 21. Ao ler A Conspiração Aberta, hoje, não podemos escapar à observação de que tanto os mais ilustrados quanto os mais humildes cidadãos do atual “novo normal”, repetem não apenas as palavras do Wells do início do século passado, como apresentam os mesmíssimos sentimentos oriundos de uma outra época. Como isso é possível?
Wells bendizia o conhecimento como algo sagrado, assim como a humanidade que o detém, dona de um destino vitorioso de apropriação do poder sobre a matéria que aprisiona o ser humano. Mas, em sua obra, é possível observar uma dualidade, uma tensão que aponta para uma verdadeira dúvida presente no homem. Afinal, das duas uma: ou somos animais biológicos e simplórios, prisioneiros de instintos e de uma biologia que nos oprime diariamente através das doenças, fragilidades, causando sofrimento e morte; ou somos, apesar disso, livres e capazes (quase onipotentes) graças às nossas habilidades, para transcender todas as nossas limitações e tomarmos posse de um destino já escrito: o domínio sobre a matéria e a libertação da natureza através do poder sobre o Universo. Isso significa que, para Wells, o homem precisa decidir se será um animal insignificante ou um deus. Ele acredita piamente na última opção e vivemos, hoje, o resultado dessa crença infantil disseminada por velhos deslumbrados do século passado. Esse deslumbre pôde chegar até nós graças à influência de um imaginário poderoso que fala fundo a anseios universais presentes no homem.
Mas, ao mesmo tempo, outros elementos universais puderam ser despertados a partir das mesmas intuições de seu tempo.
Outros escritores viram a loucura do deslumbre dos seus contemporâneos e escreveram terríveis profecias distópicas. George Orwell, Aldous Huxley foram alguns deles, que utilizaram a mesma linguagem, a ficção, para acender uma luz imaginativa sobre a consequência da arrogância que viam nos intelectuais.
Desde as ameaças climáticas até a pandemia, permanece o fantasma do século 20: a tensão entre as promessas científicas e utopias de uma era de deuses e as ameaças inerentes a isso. Mas ao contrário do que mostram as distopias, o temor dos intelectuais que comandam o mundo hoje não é o da perda de direitos ou de liberdades, mas o medo profundo da perda dos confortos da tecnologia, da desaceleração do avanço científico, provocado pelo obstáculo das religiões, dos nacionalismos, os mais temidos inimigos de H. G. Wells em seu livro A Conspiração Aberta.
No entanto, mais do que o Leviatã de Hobbes, que encarnava o velho estado nacional superpoderoso, o inimigo do mundo agora é um monstro muito maior e mais poderoso, adormecido sob um oceano de sonhos utópicos gnósticos da elite dos mais Antigos dominadores deste mundo, o poder do dinheiro e da destruição revolucionária. Nisto, um outro escritor, o pai do horror psicológico, H. P. Lovecraft, é mais profético que os distopistas do século 20, ao eleger como inimigo do mundo um monstro de mil tentáculos, que ataca os sonhos e chama seus acólitos a encarnarem uma conspiração pelo domínio da terra. Pior que o estado-leviatã é o estado-cthulhu, a besta de mil tentáculos do globalismo. No seu célebre conto O chamado de Cthulhu, assim como na maior parte de sua obra, Lovecraft expõe o verdadeiro horror oriundo da promessa da “era do conhecimento”, dos avanços científicos frutos da arrogância humana. O mal, quando se apossa das almas sedentas pelo conhecimento alcançado pela investigação fanática, faz de seus possuidores verdadeiras bestas saltodonticas, habitando abismos vertiginosos de cinismo niilista.
A própria obra de Lovecraft traz em si um niilismo que abarca a própria vida do autor. A bênção da ignorância, festejada por ele em dado momento, será motivo para que a humanidade anseie por uma nova “idade das trevas”. O niilismo sedutor gerado diante do perigoso deslumbre dos utopistas expõe a óbvia conclusão de que seus sonhos originariam perigosas distopias revolucionárias semelhantes às bestas mitológicas descritas nos contos de Lovecraft, inspirador da estética do horror psicológico surgido no entre guerras e aprofundado por meio do cinema trash dos anos 1980. Eis a verdadeira estética dos deslumbres intelectuais de mentes como a de H. G. Wells e seus colegas da Sociedade Fabiana, que só podem ser festejados por um mundo doente que anseia pela própria destruição como forma de “transcendência”.
Mas é claro que a desilusão de Lovecraft com o conhecimento é apenas um outro sintoma da reação antimoderna que marcou o início do século. Para muitos, a depressão de 1929 destruiu os sonhos liberais e sua crença na mão invisível. E não foi sem razão que o pai do horror cósmico imaginou terríveis consequências advindas do deslumbre com as novidades econômicas e sociais, embora acreditasse na necessidade de reformas econômicas. Como um defensor dos EUA e da tradição inglesa do país, Lovecraft acreditava no poder de uma aristocracia estética, cuja existência garantiria a manutenção da existência do Ocidente. Essa aristocracia, profundamente ligada às tradições (ele defendeu a valorização da herança britânica dos EUA contra um nacionalismo anti-inglês), é justamente a aristocracia alvo de intelectuais revolucionários como H. G. Wells. Para Lovecraft, a ausência dessa aristocracia estética traria uma verdadeira depressão e horror ao mundo. Nisso, o pai do horror se alinha à tradição ocidental.
Diferente de Lovecraft, Wells representa o anti-ocidental, anti-tradicional e, portanto, anti-humano, ao passo que o criador dos mitos de Cthulhu buscou encarnar o medo humano como raiz profunda da sua sobrevivência, em nome da qual deveria, se for preciso, renunciar até mesmo ao conhecimento. Como protestante exemplar, acreditava que se a verdade é contra Deus, fica-se com Deus. No caso, a verdade é pretensamente a ciência do seu tempo.
No conto Facts concerning the Late Arthur Jermyn and His Family, de 1921, Lovecraft conta a história de um antropólogo que, em sua incansável busca pela verdade, descobre uma verdade aterradora sobre seus próprios antepassados, que teriam se originado de uma raça de macacos da África. Essa descoberta leva o personagem a um fim terrível. Lovecraft demonstra o pavor e a inconformidade da civilização com as teorias científicas que surgiam no seu tempo, a Teoria da Relatividade, o Evolucionismo de Darwin, propostas que o autor via como destruidoras e frutos de uma visão ao mesmo tempo degradante da humanidade.
Tudo o que parecia a Wells um avanço irremediável em direção ao poder e ao domínio humano sobre seu destino era visto por Lovecraft como a maior causa da ruína humana. O que Wells apontava como oportunidade para a “evolução” dos valores e instituições políticas, Lovecraft via a grande causa da destruição do Ocidente. Tanto Wells quanto Lovecraft não compreendiam o suficiente de ciência e de filosofia política, mas ao menos este último percebeu um alto preço da arrogância humana, apenas resumindo-o na possibilidade da loucura diante de verdades pesadas demais e que, em algum ponto, anulavam tudo o que era universal.
É, portanto, no monstro marinho lovecraftiano que reside o melhor símbolo mítico para o estado-global totalitário dos intelectuais sedentos pelo conhecimento, que terminarão (ou já terminaram) enlouquecidos pela ambição do poder e do controle de tudo aquilo que o homem não poderá jamais controlar, tampouco compreender.
A partir de 2020, o discurso hegemônico global esforçou-se para desenhar a proposta de uma nova normalidade como grande avanço, grande oportunidade. Para outros, ela representou a entrada possivelmente definitiva em uma era de opressão e tirania totalitária. O despertar da besta saltodôntica lovecraftiana nunca foi tão evidente e tão assustador o seu jugo sobre a humanidade. O sonho welliano da transformação profunda das cosmovisões por meio de uma adaptação às condições do conhecimento humano e da sua racionalidade nunca foi tão real. Milhares de pessoas obedeceram às recomendações de entidades puramente por sua autoridade ou credibilidade construída paulatinamente pelos jornais. Os Grandes Antigos dos mitos de Lovecraft, são os intelectuais e seus financistas, cuja condução do destino da espécie humana foi aos poucos absorvendo.
Não é apenas o significado da mitologia lovecraftiana que antecipa o globalismo, mas também o seu conteúdo mais literal: os Grandes Antigos, em suas histórias, aparecem sob os nomes e formas de bestas babilônicas, deuses pré-cristãos da antiguidade que diante do olhar humano moderno e ansioso por sair de si mesmo, fugir da natureza humana e terrestre, apresentam-se como extraterrestres. A raça dos antigos, que habita as profundezas da Terra, veio do espaço, lugar de sonhos futuristas e utópicos dos devaneios intelectuais da raça de Wells.
O estado global cthulhuniano ataca os sonhos, sinal das expectativas, dos anseios simbólicos de transcendência que se transformam, na modernidade, no deslumbre com as estrelas e com um fim último e gnóstico da humanidade como raça de deuses, promessa literal da Serpente no Éden. Se os mitos de Lovecraft nos ajudam na crítica da arrogância progressista e revolucionária, eles oferecem um niilismo mais poético do que realista, mais simbólico sobre a impressão da sua época do que sobre a realidade presente que temos que ter em mente.
O fato verdadeiramente presente que deseja ser ocultado da humanidade, especialmente a partir da pandemia do novo normal e dos sonhos ambientalistas do globalismo, é a realidade da natureza como um plano não humano, mas divino. O antídoto para as utopias e distopias, tanto do deslumbre de Wells quanto do niilismo de Lovecraft, está na visão de que o mundo pode conter em si mesmo as duas dimensões, a da esperança e a do horror.
O medo gerado na pandemia tornou não apenas o mundo terrestre e humano como suspeito e arriscado diante de uma contaminação biológica quase espiritual. Mas converteu todo o universo em uma imensa área infectada. Tem-se a impressão de que até mesmo o céu, após a morte, pode ser contaminado. Deveríamos, até mesmo diante de Deus, apresentarmo-nos de máscaras e vacinados pela humanidade, pois nada é seguro e ninguém é confiável. As máscaras simbolizam o desejo de um mundo sem cor, sem sabor, sem rosto nem fisionomia. O mundo o novo normal é um sonho totalitário de igualdade obrigatória e espontaneidade proibida. Deus, para os pandêmicos, cobra-nos a responsabilidade coletiva da salvação pelas mãos humanas. Deixados literalmente a “Deus dará”, esse demiurgo nada pode por nós, exceto nos cobrar pela infecção de nossos semelhantes. É o estado da culpa e do remorso inevitáveis.
No entanto, se nenhum histérico da pandemia jamais admitisse que deseja entrar no céu de máscara e vacinado para não infectar o Paraíso, eles certamente se comportam como tal, pois se esquecem que tanto céu quanto inferno estão diante de nós diariamente. O céu está em cada abraço ou sorriso aberto de confiança e fé na única salvação possível. E o inferno, na culpa e no medo de um demônio físico, biológico e onipresente.