21/09/2017 às 14h07
Escárnio: Juiz autoriza peça que mostra Jesus como travesti
A reportagem lembra que a peça teatral é de autoria da dramaturga transgênero escocesa Jo Clifford
Brasil
Foto: Reprodução
O juiz José Antônio Coitinho, da 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Porto Alegre, em decisão liminar (leia íntegra abaixo), garantiu a continuidade da exibição da peça teatral “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, programada para ficar em cartaz na Pinacoteca Rubem Berta, na capital gaúcha, entre os dias 21 e 22 de setembro. As informações foram veiculadas há pouco no site Jota, especializado em Judiciário.
“No popular, diríamos, irá quem quiser ver”, resumiu José Antônio.
“Não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano. [...] Na ficha técnica consta classificação: 16 anos. A nossos filhos em tenra idade não alcançará, a não ser que assim desejemos e para tanto diligenciemos. Não há falar em agressão à cultura ou à formação do caráter de quem quer que seja”, acrescentou o magistrado.
A reportagem lembra que a peça teatral é de autoria da dramaturga transgênero escocesa Jo Clifford. Em cena, como protagonista, a atriz travesti Renata Carvalho interpreta Jesus Cristo, o que provocou protestos de católicos e outras vertentes do cristianismo. “Vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais”, arrematou o juiz, comparando o caso com o atentado, em 7 de janeiro de 2015, ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, que ironiza religiões como o islamismo.
José Antônio argumenta que o impresso, em essência, foi censurado justamente pela maneira de pensar e expressar o que pensa. E, para ilustrar a comparação, o magistrado recorreu ao lema que correu as redes sociais, àquela ocasião, em apoio ao jornal francês. “E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais. Je suis Charlie”, sentenciou Coitinho.
“Ao juiz é vedado proibir que cada ser humano expresse sua fé ou a falta desta da maneira que melhor lhe aprouver. Não lhe compete essa censura. Há pouco tempo, assistimos ao assassinato de cartunistas franceses do Charlie Hebdo, que satirizaram questões religiosas. Na essência, foram censurados. Censurados por expressar sua maneira de pensar”, conclui o juiz.
Arte?
O juiz apontou equívoco do advogado Pedro Geraldo Cancian Gomes, autor da ação contra a peça, ao afirmar que ela “não é arte”. “Antes da estreia na Capital Gaúcha, já está aflorando paixões. Ódio, parece já ter despertado. O que melhor consistiria em arte do que a obra que toca, acaricia ou fere, os sentimentos humanos? O ajuizamento da presente demanda e as angustias que vertem da inicial são a prova contundente de que, de arte, estamos a falar”, contrapôs Coitinho.
O site informa ainda que o advogado Pedro Geraldo Cancian Gomes se diz inconformado e avisa que recorrerá da sentença. “A decisão levou a pauta como se fosse um caso de liberdade de expressão, quando na verdade a legislação define esse quadro como um crime”, reclamou.
Leia a íntegra da decisão judicial:
Vistos.
PEDRO GERALDO CANCIAN LAGOMARCINO GOMES, devidamente qualificado nos autos, ajuizou ação contra o MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE e PINACOTECA RUBEM BERTA.
Disse que a Prefeitura Municipal de Porto Alegre está promovendo o Festival Porto Alegre em Cena, contendo a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, prevista para ser realizada na Pinacoteca Rubem Berta, em 21 e 22/09/2017, às 22h. Afirmou que a peça é financiada com recursos públicos, advindos do Pró-Cultura RS, Prefeitura de Porto Alegre e Ministério da Cultura.
Relatou que a peça traz a figura de Jesus Cristo representada por um travesti, propondo seu retorno na condição de transexual. Sustentou que a peça proposta é uma afronta aos costumes religiosos. Requereu, liminarmente, seja suspendida a exibição da peça teatral O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, marcada para ser realizada dias 21 e 22 de setembro, às 22h, na Pinacoteca Rubem Berta.
No mérito, pediu a procedência da ação, tornando definitiva a tutela de urgência, a fim de cancelar a exibição da aludida peça.Atribuiu à causa o valor de alçada.Juntou documentos.
É O RELATO.
PASSO A DECIDIR.
Há que ser indeferido o pedido liminar.Não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano.
O crime e a imoralidade que fere têm de ser oprimidos pelo julgador. A liberdade preservada.
A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, propõe – fato notório – uma reflexão sobre o preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mal gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa.
Ao Juiz é vedado proibir que cada ser humano expresse sua fé ou a falta desta da maneira que melhor lhe aprouver. Não lhe compete essa censura.
Há pouco tempo, assistimos ao assassinato de cartunistas franceses do Charlie Hebdo, que satirizaram questões religiosas. Na essência, foram censurados. Censurados por expressar sua maneira de pensar.
Não, ao Juiz não compete censurar a fé ou sua ausência.A alegada questão da sexualidade de personagens, imaginada para o espetáculo, é absolutamente irrelevante. Transexual, heterossexual, homossexual, bissexual, constituem seres humanos idênticos na essência, não sendo minimamente sustentável a tese de que uma ou outra opção possa diminuir ou enobrecer quem quer que seja representado no teatro.
Não se está a defender que é correta a total liberdade de escolha sexual e muito menos a condenar essa postura. Defendemos a liberdade de escolher, de toda pessoa escolher, de acordo com sua evolução, o que fazer de sua vida, em todos os aspectos, mantido o respeito pelo seu semelhante.
Preciso é, de pronto, dizer que, gostemos ou não, a famigerada peça é, sim, uma obra de arte. Neste aspecto, dentro da subjetividade inerente ao tema, possível arriscar que erra o autor quando afirma isso não é arte (fl.02).
Antes da estreia na Capital Gaúcha, já está aflorando paixões. Ódio, parece já ter despertado.O que melhor consistiria em arte do que a obra que toca, acaricia ou fere, os sentimentos humanos? O ajuizamento da presente demanda e as angustias que vertem da inicial são a prova contundente de que, de arte, estamos a falar.
Claro que, como tal, está sujeita a toda crítica e o processo judicial a critica duramente. Não estamos falando de encenação que será transmitida em televisão aberta. Tampouco em televisão a cabo. Nem em rádio serão ouvidas as falas dos artistas. Não vai invadir nossas casas e atormentar o imaginário de nossos filhos ou vilipendiar a moral dos idosos.
Trata-se de espetáculo funesto ou abençoado que terá lugar em ambiente fechado, cujo ingresso demandará despender dinheiro, não sendo permitida a entrada de pessoas com idade inapropriada. Na ficha técnica consta classificação: 16 anos. A nossos filhos em tenra idade não alcançará, a não ser que assim desejemos e para tanto diligenciemos. Não há falar em agressão à cultura ou à formação do caráter de quem quer que seja.
No popular, diríamos, irá quem quiser ver.
E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais. Je suis Charlie.
Citem-se. Intimem-se.
Após as defesas, voltem para análise do pedido de inclusão no polo passivo de Esther Pillar Grossi. Dil. Legais