Dois dos mais importantes templos católicos romanos de Mato Grosso, a Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus de Cuiabá (mais conhecida como Igreja Matriz, a primeira construída aqui) e o Santuário de Nossa Senhora Auxiliadora (aquela do Colégio São Gonçalo) mantêm em suas dependências jazigos com restos mortais de várias dezenas de figuras históricas, como os bandeirantes fundadores Pascoal Moreira Cabral Leme e Miguel Sutil de Oliveira, além de vários de nossos maiores líderes religiosos, como Dom José Antonio dos Reis (que dá nome à praça Bispo Dom José) e Dom Francisco de Aquino Correa (sim, o mesmo do nome do bairro).
A maioria das por eles chamadas relíquias pertence a bispos e padres, mas também há os nominados mestres, homens que ajudaram na manutenção da obra da mais antiga instituição cristã do mundo e que, de acordo com eles mesmos, fora fundada pelo apóstolo Pedro. “Um mestre é um homem que dedicou sua vida à igreja, inclusive com o exercício do celibato, mas não foram ordenados ao sacerdócio”, explica o padre e mestre em história Felisberto Samuel da Cruz, 60 anos.
Em ambas igrejas é possível visitar gratuitamente as criptas onde estão sepultados, desde 1727, o fundador do Arraial da Forquilha (para lá transferido três anos após sua morte, em 1724), e o achador das Lavras do Sutil, aquele que dá nome a maior avenida da cidade. “Ali foi construída em pau-a-pique, depois taipa e por fim adobe, no início do século 18, a primeira igreja. Foi ela que deu origem à primeira vila e onde foi iniciada a cidade”, continua padre Felisberto.
O pioneiro Cabral também foi o primeiro ser humano a ali ser sepultado. Sobre Miguel Sutil, há uma curiosidade extra, além de ser ele a encontrar ouro nas minas logo batizadas como Lavras do Sutil – o bandeirante expirou e foi enterrado em seu estado natal, São Paulo, em 1755, mas somente após mais de 200 anos é que seus restos mortais foram transferidos para o local onde estão até hoje, no coração da capital.
Além deles, jazem ali vultos da história diocesana local, como o arcebispo Carlos Luís D’Amour, primeiro bispo do século 20, cujo bispado vinha desde fins do século 19 – precisamente 1878 (de acordo com o anotado em seu retrato feito a óleo, guardado dentro da cúria metropolitana, no complexo localizado no alto do Morro do Seminário, mas datado como 1876 no site da arquidiocese) – e que permaneceu à frente da Basílica Senhor Bom Jesus de Cuiabá até 1921, até ser sucedido pelo mais conhecido dos bispos da capital, Dom Francisco de Aquino Correa, cuja atividade sacerdotal e administrativa por ali durou até 1950 (no retrato a óleo, mas 1956, em divergência, de novo, entre retrato e site).
Para quem gosta de história, é possível observar, além dos túmulos (localizados no subsolo da Matriz e logo na entrada, à esquerda, no Santuário de Nossa Senhora) detalhes preciosos como o fato de a cripta também ser a morada eterna do primeiro prelado de Mato Grosso e ainda o primeiro a ser consagrado príncipe da igreja por aqui: Dom Frei José Nicolau de Azevedo Coutinho Gentil (1782), que, entretanto, não chegou a tomar posse do cargo.
A honra coube então a Dom José Luiz de Castro Pereira, cujo principado, agora diocesano, iniciou em 1803. No comando daquele templo e suas atribuições, Pereira ficou até 1822. Curiosidade histórica: a prelazia fora instituída pelo papa Bento 14 em 1745, por meio da bula Candor Lucis aeternae.
Mesmo quem não é católico hoje em dia sabe que houve mais dois Bentos, sendo o último o alemão Joseph Ratzinger, de número 16 e o primeiro em seis séculos a declinar do trono do preferido de Jesus, devido a intrigas dentro do Vaticano até hoje não devidamente esclarecidas por seu sucessor, o argentino Jorge Mario Bergoglio (consagrado como Francisco), mesmo passados quatro anos e nove meses desde o ato.
E por falar em intrigas e papas, lá também está sepultado o frei José Maria de Macerata, indicado pelo próprio imperador Dom Pedro I para ser o primeiro bispo diocesano de Cuiabá (a prelazia fora elevada a diocese pelo papa Leão XII em sua bula Sollicita Catholici Gregis Cura). Ainda assim, o capuchinho também não assumiu o cargo por uma proibição da Câmara da época.
Os motivos são controversos, porém frei José Maria era tido e havido como homem benevolente, muito ligado aos mais pobres, catequizador e alvo de histórias várias, como a que teria poderes sobrenaturais de cura e até adivinhação, mas acima de tudo bondoso, caridoso e próximo do povo. Que isso gerasse para ele frutos amargos na árvore da política é algo humano, demasiado humano. Ato contínuo, a Câmara municipal cassou (e barrou) a indicação feita diretamente pelo imperador.
Assim, José Maria de Macerata desceu à terra como frei e padre, mas jamais bispo até o fim de seus dias, em 1846.
Quem tem mais de 20 anos também se lembra de um certo Bispo Dom José, por causa do terminal rodoviário do qual pouquíssima gente tem saudade. O nome, entretanto, não foi dado em homenagem ao frei, mas ao bispo que, enfim, ascendeu: Dom José Antonio dos Reis. Seu bispado foi longo, durou de 1833 até 1876.
Santuário Nossa Senhora Auxiliadora.
Outro conjunto de relíquias católicas e histórias pode ser visitado na bela igreja de Nossa Senhora, contígua ao Colégio São Gonçalo. Lá, jazem, no templo de 123 anos (não com a configuração atual, neogótica, construída em 1912, mas como paróquia ela foi criada bem antes, em 1894).
“Aqui é cheio de relíquias de outros salesianos que morreram ao longo destes 123 anos da igreja de Nossa Senhora. Era bastante comum antigamente que se enterrasse dentro da igreja. Hoje em dia, normalmente se enterra antes num cemitério mesmo e depois de um tempo se transfere os restos mortais para algumas igrejas”, explica padre Sebastião Paniago Vilela, 90 anos.
Uma exceção nesse quesito é o mais conhecido dos padres ali enterrados na contemporaneidade: o padre Firmo Pinto Duarte Filho, morto aos 77 anos, e cujo pedido explícito foi para que ali fosse sepultado. Reitor do santuário, bastante respeitado na cidade por sua obra, foi obviamente atendido.
Junto com ele estão outros 28 homens, divididos em 16 padres e outros 13 mestres, mortos e ali colocados desde o fim do século 19.
Motivação para manter jazigos é histórica e consciente
O hábito de conservar as relíquias de religiosos católicos em suas igrejas nos dias atuais ainda faz sentido na medida em que a ideia é justamente conservar em sua esteira a história e os feitos desses homens e mulheres, de acordo com sua importância para manutenção da obra de Jesus Cristo na Terra, argumenta padre Felisberto.
“Depende diretamente do grau de importância para o mundo, mas não só em razão eclesiástica. Por exemplo, é inegável a importância de João Paulo II, tanto para um quanto para o outro. Mas é bom lembrar que nem todos os papas são santos, e nem todos os papas são mártires, assim como nem todos os santos são mártires. Alguns são santos porque exerceram funções de caridade, dedicação, empenho e voluntariado”, comenta padre Felisberto, ao ser questionado do porquê residem ao lado padres e bispos pessoas não ordenadas.
Reforça entretanto o interesse da igreja em manter não só seus príncipes e sacerdotes, mas também “personalidades do estado de Mato Grosso. Vários pioneiros, que vieram como desbravadores, aqui ficaram e morreram aqui. Alguns mestres, estudaram, não se tornaram padres, mas eram colaboradores da congregação. Viveram como padres, inclusive em celibato”.
Ou seja, a depender da Igreja Católica Romana, a história de líderes continuará sendo conservada e guardada em seu seio, como o é desde o início dos tempos pós Jesus Cristo. Em Cuiabá, as criptas podem ser visitadas praticamente todos os dias (o ideal é ligar antes nas igrejas, os números de telefone estão nos sites delas, indicadas ao longo do texto).
Demolição da 1ª catedral não foi só opção estética
De acordo com o padre historiador Felisberto, a demolição da primeira basílica não foi mera e exatamente uma opção estética, pois suas paredes laterais, feitas em adobe, estavam a ruir e foram devidamente condenadas pelos arquitetos e engenheiros da época. Foi isso essencialmente que levou Dom Orlando Chaves a optar pela demolição, acatada pelo governador Pedro Pedrossian.
“Não foi um mero ‘vamos derrubar 250 anos de história no chão’”, esclarece padre Felisberto. “Mesmo para manter a frente da igreja, que não estava ruindo, era necessário reforçar todas as paredes laterais, mas Dom Orlando Chaves preferiu demolir e construir uma nova. E isso demandou algumas cargas de dinamite”, lembra.
Originalmente de RD News